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Aos Olhos da (in)Justiça

  • Foto do escritor: Ana Cláudia Pereira
    Ana Cláudia Pereira
  • 7 de ago. de 2019
  • 5 min de leitura

Atualizado: 22 de mai. de 2023

Recentemente tive a oportunidade de ver a tão aclamada minissérie da Netflix “Aos Olhos da Justiça” (ou “When they see us” no seu título original), que levanta muitas questões a nível jurídico, permitindo estabelecer uma análise e posterior comparação dos sistemas penais americano e português.

Tendo por base eventos reais, esta série permite conhecer o caso de 5 adolescentes de raças negra e latina que se viram envolvidos, diga-se desde já, à força num processo com grandes dimensões e mediatismo.

Numa breve contextualização, tudo começou na noite de 19 de abril de 1989, no conhecido “Central Park” em Nova Iorque, onde os 5 jovens, que faziam parte de um grupo de 30 miúdos, todos eles de pele escura, entre os 14 e os 16 anos, se encontravam a “bravejar”, isto é, a atacar e aterrorizar transeuntes sem qualquer especial motivo. Contudo, nem todos participavam na dita atividade, apesar de as forças policiais, entretanto chamadas ao local, terem detido todos aqueles que não conseguiram escapar. Logo aqui testemunhamos abuso de autoridade por parte de um dos agentes que agride violenta e injustificadamente um dos jovens, pois já o tinha conseguido imobilizar.

Durante a madrugada, foi descoberto no mesmo parque o corpo de uma jovem corredora de 28 anos, moribunda e nua, com evidentes sinais de violação. Como tal, é chamada ao local a procuradora Linda Fairstein – chefe da divisão de crimes sexuais. É ela quem desempenha um dos principais papéis na condenação dos 5 rapazes, ao tentar estabelecer uma ligação entre a presença destes no locus delicti e a violação e tentativa de homicídio da jovem mulher. É de louvar o espírito pró-ativo da procuradora numa investigação de um crime como este, porém é de repudiar a sua atitude em procurar um qualquer culpado e não o efetivo criminoso.

Deste modo, o primeiro episódio foi aquele que mais me transtornou, pois retrata os interrogatórios a que foram sujeitos os vários rapazes detidos no parque, cerca de 15. Destes, os agentes obtiveram informações sobre os que haviam escapado e foi assim que Antron McCray (um dos cinco) chegou à esquadra, acompanhado do seu pai, visto que era menor de 16 anos. É elaborada uma lista com vários nomes, entre eles Yusef Salaam que se encontrava acompanhado, por mero acaso, do seu amigo Korey Wise, que, apesar de não constar da referida lista, acabou por ser arrastado para a situação. Yusef tinha 15 anos, mas tinha alterado a sua data de nascimento do passe de autocarro de modo a ter 16 anos, o que levou a que os agentes se aproveitassem da situação para que o seu interrogatório não tivesse de ser presenciado por um representante legal. Não obstante, assim que a sua mãe soube do ocorrido, dirigiu-se à esquadra policial, levando embora consigo o filho por ter conhecimento da ilegalidade cometida. A mesma sorte não teve Korey, de 16 anos. A completar o grupo dos 5 acusados estão Raymond Santana Jr. e Kevin Richardson, o rapaz agredido, que não se atreveu a expor a agressão.

Os jovens foram mantidos em salas de interrogatório durante mais de 18 horas, sem direito a comida, bebida ou qualquer tipo de pausa, o que constitui uma grave ofensa aos direitos humanos previstos em instrumentos internacionais e nas Constituições de vários Estados.

Para piorar a situação, os inspetores coagiram os miúdos a confissões escritas e gravadas em vídeo, forçando-os a implicarem-se uns aos outros, quando, na verdade, apenas 2 deles se conheciam. Apenas Yusef escapou às confissões, já que a sua mãe o havia retirado da esquadra, conhecendo os seus direitos. Diz-nos o artigo 140º do nosso Código de Processo Penal (de ora em diante CPP) que “Sempre que o arguido prestar declarações, e ainda que se encontre detido ou preso, deve encontrar-se livre na sua pessoa”, remetendo ainda para um outro preceito que refere que “O depoimento é um ato pessoal que não pode, em caso algum, ser feito por intermédio do procurador” (artigo 138º do CPP). Este mesmo artigo, no número 2, prescreve o seguinte “não devem ser feitas perguntas sugestivas ou impertinentes, nem quaisquer outras que possam prejudicar a espontaneidade e a sinceridade das respostas”. Com efeito, os inspetores praticamente depuseram pelos jovens, tendo, inclusivamente, escrito as confissões destes e criado quase uns “guiões” para as gravações em vídeo.

A própria Constituição da República Portuguesa sanciona com a nulidade todas as provas obtidas mediante coação, nos termos do artigo 32º número 8, sendo que as confissões constituíram in casu a única prova decisiva. E esta é outra questão que deve ser abordada: não houve qualquer prova que permitisse ao juiz nem aos jurados determinar uma decisão acusatória. É de mencionar que a corredora atacada não tinha memória do sucedido, dada a gravidade da sua condição médica.

Os 5 adolescentes foram, assim, condenados a diferentes penas de prisão, consoante as suas idades e o alegado envolvimento no crime. Contudo, aquele que foi mais penalizado foi, sem dúvida, Korey Wise, pois já tinha 16 anos e, como tal, não teve a oportunidade que os restantes tiveram de passar por um centro de correção juvenil antes de ingressarem na prisão. Em Portugal, pelo contrário, beneficiaria do Regime Penal Especial para Jovens, aplicável entre os 16 e os 21 anos.

Passados 13 anos, o verdadeiro criminoso, por qualquer motivo, decide confessar o crime, levando a que uma outra procuradora investigasse de novo o delito. Esta acaba por chegar à conclusão de que havia sido cometido um erro com a condenação dos 5 jovens, já que o ADN encontrado na vítima correspondia ao homem que surge agora em cena e este descreveu pormenores que só o real agente poderia saber. Segundo a lei do Estado de Nova Iorque, o crime já havia prescrito, pelo que o criminoso acabou por não ser julgado.

Dá-se o processo de ilibação dos anteriores condenados, alguns deles já livres de prisão, que, em 2003, intentam uma ação contra o Estado, pedindo uma indemnização pelos danos sofridos e pela wrongful conviction, alegando discriminação, danos não patrimoniais e difamação. Os dois últimos episódios da minissérie retratam exatamente o sofrimento causado pelo encarceramento e pelos efeitos que uma condenação tem na vida de uma pessoa após o cumprimento da pena, bem como todas as consequências que se repercutem inevitavelmente nos seus familiares e amigos. Recomendo, para uma perceção mais realista, a entrevista “Oprah Winfrey presents: When They See Us Now”.

Ao final de mais de uma década, conseguem 41 milhões de dólares de indemnização (divididos entre os 5), um valor que, por muito avultado que seja, nunca conseguirá reparar os danos que estes jovens sofreram, nem muito menos trazer de volta a parte da sua vida perdida em vão dentro das quatro paredes de um estabelecimento prisional.



Imagem retirada de: https://en.wikipedia.org/wiki/When_They_See_Us

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