Suprimentos nas sociedades anónimas? Uma nova perspetiva para uma velha pergunta.
- Ana Cláudia Pereira
- 22 de mai. de 2023
- 10 min de leitura
O contrato de suprimento é um tipo contratual bastante utilizado nos dias de hoje enquanto forma de financiamento das sociedades comerciais portuguesas, em virtude, desde logo, do estado de subcapitalização em que estas tendem a nascer. Os suprimentos surgem, assim, enquanto meio de suprir as necessidades económico-financeiras das sociedades.
Mas é sobretudo utilizado pelas vantagens que apresenta para o sócio que a ele recorre. Um sócio pode, por esta via, conceder um empréstimo à sociedade sem aumentar a sua responsabilidade (o que não sucederia num aumento do capital social), beneficiando de juros remuneratórios e podendo obter o reembolso da quantia mutuada a qualquer momento. O sócio é, assim, “um verdadeiro empresário, investindo na empresa, lucrando com esse investimento, mas evitando, pelo menos até certo ponto, o risco empresarial.” Por outras palavras, “o alvo é ser sócio nos direitos, mas estranho nos deveres".
O regime dos suprimentos encontra-se previsto nos artigos 243.º a 245.º do CSC, dentro do Título III referente às sociedades por quotas. À primeira vista, esta regulamentação legal só se aplicaria a este tipo societário, em virtude do elemento sistemático. Não obstante, a doutrina tem equacionado a sua aplicação aos outros tipos societários, designadamente às sociedades anónimas, desde a entrada em vigor do CSC.
Paulo Olavo Cunha entende que a inserção sistemática na parte relativa às sociedades por quotas tem um fundamento puramente histórico, “precisamente por ser neste tipo de sociedade que faz mais sentido serem exigidos suprimentos, e porventura deliberados, ainda que não correspondam a uma obrigação contratual dos sócios.”
Oliveira Martins acrescenta, ainda, que esta opção do legislador “terá sido, porventura, a de consagrar o regime a propósito das sociedades onde mais frequentemente ocorrem suprimentos, mas, teria andado melhor se o consagrasse na parte geral. Em todo o caso, as más opções legislativas não devem tolher o intérprete.”
Nesse sentido, um número significativo de Autores considera que as razões que levaram à criação de um regime legal de suprimentos nas sociedades por quotas também se verificam e justificam nas sociedades anónimas. Ou seja, nestas existe, de igual modo, a necessidade de evitar que os sócios substituam o financiamento com capital próprio através do recurso a capital alheio; súbitas restituições que coloquem as sociedades em dificuldade também devem ser precavidas; e também os credores destas sociedades devem ser protegidos face ao potencial concurso com os sócios no reembolso dos seus créditos.
Sem prejuízo, Alexandre Mota Pinto salienta que a “dupla qualidade de acionista e credor” não origina tantos obstáculos como no caso das sociedades por quotas, porque as sociedades anónimas, em princípio, são dotadas de mais capitais (veja-se o facto de o capital social mínimo ser de EUR 50.000,00) e estes encontram-se, por norma, dispersos por vários acionistas, que muitas vezes têm na sociedade um interesse puramente lucrativo.
Refira-se, ainda, que a dúvida não está nos suprimentos oriundos de obrigação prevista nos estatutos da sociedade, mas apenas nos suprimentos facultativos. Coutinho de Abreu explica-o: “Sabemos que os acionistas podem ficar obrigados pelo estatuto social a efetuarem prestações acessórias (art. 287º). Estas prestações podem corresponder às de um contrato típico, aplicando-se então (também) a regulamentação legal própria desse contrato (art. 287º, 1, in fine). O contrato de suprimento é típico. Logo, é lícito estabelecer-se no estatuto de uma sociedade anónima (...) a obrigação acessória de um, alguns ou todos os acionistas efetuarem suprimentos.” Aqui o regime dos suprimentos aplica-se às sociedades anónimas “por simples remissão legal”. Pelo que, a este nível, a questão está ultrapassada.
Com efeito, é meu entender que existe uma verdadeira necessidade de regulamentar o regime dos suprimentos efetuados por acionistas. É que, como já se disse, também nas sociedades anónimas há que acautelar os perigos suscitados por um súbito e intempestivo reembolso do empréstimo, bem como a concorrência gerada entre acionistas e credores sociais, que deve ser reequilibrada face à posição privilegiada em que se encontram os primeiros. Assim, contrariamente ao defendido por Armando Triunfante, existe uma verdadeira lacuna, a ser preenchida com recurso à aplicação analógica do regime previsto nos artigos 243.º a 245.º do CSC, com base nos argumentos apontados pelos Autores que defendem o recurso à mesma, no pressuposto de que não é criado um preceito exclusivamente para esta matéria.
Mas deveremos aplicar o regime a todos os acionistas, ou só a uma determinada categoria deles? Novamente, posiciono-me em sentido contrário ao defendido por Armando Triunfante (e, quanto a este ponto, também por Coutinho de Abreu): se o legislador também não aplica o regime a todos os empréstimos que os sócios das sociedades por quotas realizem (só aos que reúnam os requisitos estipulados, nomeadamente, o caráter de permanência do crédito), não faria sentido que, nas sociedades anónimas, se aplicasse a todos os acionistas indistintamente, alegadamente em nome do princípio de igualdade de tratamento dos sócios.
Mas também não se me afigura correto utilizar o critério do montante da participação social do acionista. Tal como Alexandre Mota Pinto salienta, “não vemos como se pode deduzir do montante da participação social de um accionista uma eventual função de capital próprio dos mútuos efectuados por ele à sociedade: se um accionista com participações correspondentes a 1% do capital social efectuar mútuos de valor superior à cifra do capital, não será reconhecida a sua função de substituição do capital?”
O ponto é precisamente este: encontrar um critério que demonstre que o mútuo efetuado à sociedade desempenha a função de substituição do capital. O critério tem de ser o mais objetivo possível, para que não haja entraves ao tráfego jurídico e não haja um mútuo que fique em stand-by, sujeito às dúvidas geradas por critérios subjetivos, ambíguos e de difícil concretização. Tem de ser possível olhar para um empréstimo e dizer, imediatamente, se se subsume ou não à figura do suprimento.
Raúl Ventura, precursor do regime dos suprimentos, “manifesta-se a favor da consagração legal de elementos objectivos” no que respeita aos pressupostos de aplicação do regime às sociedades por quotas. A própria lei, relembra Aveiro Pereira, consagrou “este elemento objectivo [o caráter de permanência] como aferidor essencial da existência de suprimento, em detrimento da intenção dos sócios, fixando o prazo de um ano de disponibilidade dos bens pela sociedade como índice do carácter de permanência (...). Nesta ordem de ideias, haverá contrato de suprimento logo que se verifiquem os elementos objectivos”. Por que não também os consagrar nas sociedades anónimas?!
O critério que, no meu entender, melhor exprime, objetivamente, a função de substituição de capital é, assim, o montante do empréstimo por referência ao volume de negócios da sociedade, tal como resultante das últimas contas de exercício aprovadas. A quantia do empréstimo constitui, como vimos, um dos índices apontados por Alexandre Mota Pinto e Oliveira Martins na qualificação de um suprimento numa sociedade anónima. E o primeiro Autor admite que este fator revela “não só que as verbas mutuadas desempenham a função de capital próprio, mas, também, o próprio interesse empresarial do accionista”. Já o segundo, constata que “o sócio através da quantia mutuada pode ficar a ter um controlo de facto sobre a sociedade que a sua participação social não permitia”.
A necessidade de indexação ao volume de negócios da sociedade prende-se com o facto de aquilo que pode ser um elevado montante para uma sociedade, já não o ser para outra. Concretizando: um empréstimo de EUR 5.000,00 tem uma influência mais acentuada numa sociedade cujo volume de negócios seja EUR 10.000,00 do que numa sociedade cujo volume de negócios ascenda a EUR 1.000.000,00.
O próprio legislador, no Regime Jurídico da Conversão de Créditos em Capital (Lei n.º 7/2018, de 2 de março), restringe o âmbito de aplicação às sociedades cujo volume de negócios corresponda ao montante estipulado no artigo 2.º, n.º 4, pelo que não é algo inédito no contexto societário.
Mas há que atender precisamente às diferentes dimensões que uma sociedade comercial pode ter. Para este efeito, atentemos à categorização operada pelo Decreto-Lei n.º 372/2007, de 6 de novembro:
- micro empresa: aquela que emprega menos de 10 pessoas e cujo volume de negócios anual ou balanço total anual não excede EUR 2.000.000,00;
- pequena empresa: aquela que emprega menos de 50 pessoas e cujo volume de negócios anual ou balanço total anual não excede EUR 10.000.000,00;
- média empresa: aquela que emprega menos de 250 pessoas e cujo volume de negócios anual não excede EUR 50.000.000,00 ou cujo balanço total anual não excede EUR 43.000.000,00;
- grande empresa: aquela que emprega mais de 250 pessoas e cujo volume de negócios anual excede EUR 50.000.000,00 ou cujo balanço total anual excede EUR 43.000.000,00.
Para além disso, refira-se que o volume de negócios anual de uma dada empresa pode ser bastante volátil ao longo dos anos, pelo que há que ter em conta uma média do volume de negócios dos últimos 2 anos. Esta regra tem, ainda, a vantagem de bloquear potenciais fraudes por parte dos administradores e/ou dos sócios, que poderiam fazer refletir determinados custos ou proveitos numa outra data, para se eximirem à sujeição ao regime dos suprimentos, claramente mais penalizador. Concretizando: poderiam fazer refletir um determinado custo no dia 2 de janeiro, ao invés de o fazerem no dia 31 de dezembro.
Assim, de acordo com esta construção, ficam sujeitos ao regime de suprimentos os empréstimos que correspondam a, pelo menos:
- 10% do volume de negócios das micro empresas;
- 8% do volume de negócios das pequenas empresas;
- 6% do volume de negócios das médias empresas;
- 5% do volume de negócios das grandes empresas,
calculados pela média das contas de exercício aprovadas nos últimos 2 anos. Esta percentagem, arbitrária, claro está, é aquela que já pode ser considerada como relevante para efeitos de substituição do capital próprio.
Esta percentagem é possível tanto relativamente a quantias mutuadas pelos sócios à sociedade, como relativamente a créditos diferidos, tendo em conta que são sempre passíveis de quantificação. Mesmo quanto às coisas fungíveis, sempre será de aplicar o disposto no artigo 28.º do CSC, para efeitos de determinação do seu valor.
Caso a sociedade anónima tenha sido constituída há menos de 2 anos, deve tomar-se por referência metade do valor determinado pelo Decreto-Lei n.º 372/2007, ou seja: se uma determinada empresa tiver iniciado a sua atividade em 2021 e empregar 20 pessoas, o seu volume de negócios anual corresponderá a EUR 5.000.000,00 (metade de EUR 10.000.000,00). Assim, se um dos sócios efetuar um empréstimo à sociedade no montante de EUR 500.000,00, estará sujeito ao regime dos suprimentos.
A indexação ao capital social poderia ter sido uma alternativa a esta tese. Contudo, entendo que a mesma originaria mais facilmente casos de fraude, numa tentativa de evitar a aplicação do regime dos suprimentos. Poderia constituir um incentivo adicional aos sócios a conformação da sociedade com um capital social superior, para que depois pudessem efetuar empréstimos em determinados montantes, de modo a que não perfizessem a percentagem necessária à aplicação do regime. Aliás, trata-se de um facto reconhecido e assumido que, em Portugal, as sociedades comerciais nascem, frequentemente, subcapitalizadas: “em Portugal as sociedades constituem-se, em regra, com o capital mínimo, entrando assim, desde logo, numa capitalização insuficiente para a generalidade dos ramos de negócio ou de serviços a que tais sociedades pretendem dedicar-se”. “Podemos, pois, afirmar que as sociedades comerciais nem sempre se constituem com um capital social adequado às suas necessidades económicas”. E é precisamente por isso que os sócios muitas vezes acabam por recorrer aos suprimentos – para dotarem a sociedade de capital que não dotaram logo ab initio. Não seria, por isso, o critério mais acertado.
Importaria, portanto, que o legislador dissipasse todas as dúvidas e procedesse à criação de uma norma expressa no CSC que aplique o regime às sociedades anónimas e em que termos, de modo a evitar a incerteza e insegurança jurídicas criadas pela sua falta. São duas as hipóteses possíveis: ou recuar os artigos 243.º a 245.º para a Parte Geral do Código, ou criar uma norma. Parece-me que esta última será a melhor solução, precisamente para permitir a diferenciação do regime face às sociedades por quotas.
Assim, propõe-se a redação de uma norma nos seguintes termos:
Secção V
Contrato de Suprimento
Artigo 297.º-A
Regime do Contrato de Suprimento
1. O regime previsto nos artigos 243.º a 245.º é aplicável aos acionistas que realizem um suprimento, tal como definido no artigo 243.º, n.º 1, cujo montante corresponda a, pelo menos:
- 10% do volume de negócios das micro empresas;
- 8% do volume de negócios das pequenas empresas;
- 6% do volume de negócios das médias empresas;
- 5% do volume de negócios das grandes empresas,
calculados pela média das contas de exercício aprovadas nos últimos 2 anos.
2. No caso de sociedade anónima constituída há menos de 2 anos, o volume de negócios corresponde a metade dos limiares financeiros definidos no artigo 2.º do Anexo ao Decreto-Lei n.º 372/2007, de 6 de novembro.
3. Tratando-se de coisa fungível, é aplicável o disposto no artigo 28.º quanto à determinação do seu valor para efeitos dos números anteriores.
Perante o exposto, conclui-se que o regime do contrato de suprimento, tal como definido no Código das Sociedades Comerciais e em legislação conexa, não dá suficiente resposta às necessidades atuais das empresas portuguesas.
Impõe-se a definição de um critério objetivo de aplicação do regime às sociedades anónimas, nomeadamente por referência à média do volume de negócios dos últimos 2 anos da empresa.
Assim, insta-se o nosso legislador a repensar todos estas dificuldades e a adotar as soluções que melhor funcionem para o tecido empresarial português.
Bibliografia:
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· CORREIA, Luís Brito, Direito Comercial, 2.º Volume, AAFDL, Lisboa, 1989, pp. 489-497;
· CUNHA, Paulo Olavo, Direito das Sociedades Comerciais, 7.ª ed., Almedina, Coimbra, 2021;
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· DOMINGUES, Paulo de Tarso, “As diferentes formas de financiamento societário pelos sócios e a transmissibilidade autónoma dos créditos respetivos”, in AA.VV., Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Heinrich Ewald Hörster, Almedina, Coimbra, 2012, pp. 753-782;
· DOMINGUES, Paulo de Tarso, O Financiamento Societário pelos Sócios, Almedina, Coimbra, 2021;
· DUARTE, Rui Pinto, Escritos sobre Direito das Sociedades, Coimbra Editora, Coimbra, 2008, pp. 225-255;
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· MAIA, Pedro, “Anotação ao Acórdão do STJ de 13 de Outubro de 2011”, in Revista de Legislação e de Jurisprudência, Coimbra Editora, Coimbra, 142.º Ano (2012-2013), pp. 196-224;
· MARTINS, João Pedro Vargas Carinhas Oliveira, “Os Suprimentos no Financiamento Societário”, in AA.VV.,Temas de Direito das Sociedades, Coimbra Editora, Coimbra, 2011, pp. 64-69;
· PEREIRA, João Aveiro, O Contrato de Suprimento, 2.ª ed., Coimbra Editora, Coimbra, 2001;
· PINTO, Alexandre Mota, “Anotação aos artigos 243.º a 245.º do Código das Sociedades Comerciais”, in ABREU, Jorge M. Coutinho de (coord.), Código das Sociedades Comerciais em Comentário, Vol. III, Almedina, Coimbra, 2011, pp. 625-656;
· PINTO, Alexandre Mota, Do Contrato de Suprimento – o Financiamento da Sociedade entre Capital Próprio e Capital Alheio, Almedina, Coimbra, 2002;
· TRIUNFANTE, Armando, Suprimentos, disponível em https://www.justicatv.com/2018/artigos/armando-triunfante-27-07-2021/SUPRIMENTOS.pdf;
· VASCONCELOS, Pedro Pais de, A Participação Social nas Sociedades Comerciais, 2.ª ed., Almedina, Coimbra, 2006, pp. 282-286;
· VENTURA, Raúl, “O contrato de suprimento no Código das Sociedades Comerciais”, in O Direito, Associação Promotora de O Direito, Lisboa, Ano 121.º (1989), pp. 7-73;
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Imagem retirada de: https://balcaounicodosolicitador.net/servicos-juridicos/sociedades-comerciais
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