A conversão de suprimentos em capital social: um regime (des)complicado?
- Ana Cláudia Pereira
- 22 de mai. de 2023
- 10 min de leitura
O Decreto-Lei n.º 79/2017, de 30 de junho, operou uma reforma ao Código das Sociedades Comerciais (para além de outras alterações), num contexto de “relançamento da economia portuguesa”, “redução do elevado nível de endividamento” e “melhoria de condições para o investimento das empresas”, designadamente “através da eliminação ou mitigação dos constrangimentos com que estas atualmente se deparam no acesso ao financiamento por capitais próprios ou alheios” (cfr. preâmbulo do diploma). Concretamente, o Decreto-Lei criou um “mecanismo simplificado de aumento do capital social por conversão de suprimentos”, no seguimento do Programa Capitalizar, aprovado pela Resolução do Conselho de Ministros n.º 42/2016, de 18 de agosto.
Naquilo que nos concerne, foram alterados os artigos 87.º, 88.º e 89.º do CSC, que passaram, portanto, a prever o tal mecanismo simplificado de conversão de suprimentos em capital social.
Diz-nos a doutrina que “O aumento por conversão de créditos é um aumento em espécie que se traduz em integrar no capital social dívida que a sociedade tenha perante os seus sócios ou terceiros”. Em contrapartida, a participação social do sócio aumenta em valor idêntico ao do bem (suprimento) com que deu entrada para o capital social da sociedade.
Porquê simplificado? Porque se consagraram dois desvios ao regime geral que permitiram (pelo menos em teoria) simplificar este processo de aumento do capital social:
(i) a desnecessidade de uma deliberação da assembleia geral (artigos 85.º, n.º 1 e 246.º, n.º 1);
(ii) a desnecessidade de avaliação do bem que constitui a entrada em espécie por parte de um revisor oficial de contas (“ROC”) independente (artigo 87.º, n.º 4 e 5).
Vejamos mais de perto cada um deles.
A desnecessidade de deliberação da assembleia geral
O artigo 87.º, n.º 4, na redação dada pelo Decreto-Lei em análise, prevê que o sócio que detenha quotas correspondentes a, pelo menos, 75% do capital social (artigo 265.º, n.º 1) possa converter os suprimentos que tenha realizado em capital social por mera vontade unilateral, através de comunicação. Não determina nenhuma forma específica para esse efeito, pelo que se aplica a regra geral da liberdade de forma do artigo 219.º do Código Civil.
Sem prejuízo, esta comunicação unilateral está sujeita à não oposição por parte dos sócios minoritários para produzir os seus efeitos. Verificamos, logo a este nível, uma falha do regime que o torna pouco apelativo: os sócios minoritários dispõem de um verdadeiro “direito de veto sobre a operação”, sendo que a sua oposição não tem sequer de ser fundamentada. Seria interessante, assim, que a lei impusesse a justificação da oposição, para posterior apreciação da gerência, ainda que isso implicasse mais dilações temporais num mecanismo que se pretende rápido...
Por outro lado, Ferreira Gomes destaca um potencial abuso dos sócios maioritários sobre os minoritários advindo deste regime da preterição do processo deliberativo, na medida em que fica prejudicado o “direito destes [dos sócios minoritários] a uma cabal informação”. Creio que não seja assim, pois podem sempre os sócios fazer uso do seu direito à informação, nos termos do artigo 214.º.
Mas o que sucede se um dos sócios se efetivamente opuser? Nesse caso, o(s) sócio(s) que pretende(m) a conversão dos suprimentos têm de recorrer ao regime geral e realizar uma assembleia geral, caso em que a avaliação dos créditos terá de obedecer ao disposto no artigo 28.º.
Paulo de Tarso Domingues chama a atenção ainda para o seguinte: é que “a esta operação de aumento de capital aplica-se igualmente o regime do artigo 88.º CSC”, de acordo com o qual “o aumento de capital apenas produzirá efeitos quando for emitida a declaração ali prevista”. Contudo, não havendo lugar a assembleia geral, a declaração é emitida pela gerência, “sendo só a partir deste momento que o aumento de capital produzirá os seus efeitos”. Esta declaração só pode, todavia, ser emitida depois de terminado o prazo para oposição dos sócios minoritários e nenhum destes a tiver deduzido.
Subsiste a dúvida de saber a que data se refere o artigo 88.º e que deve integrar a declaração emitida pela gerência: é a data da realização dos suprimentos ou a data da decisão de conversão? Há quem admita que será a data da realização dos suprimentos, o que pode relevar para efeitos de cálculo e contabilização de juros remuneratórios e, também, de determinação da eventual liquidação de imposto de selo sobre o valor dos suprimentos realizados que sejam convertidos em capital.
Pode, ainda, suceder que um dos sócios minoritários (ou vários) queiram também converter os seus créditos, ainda que não disponham da percentagem mínima para se fazerem valer do regime simplificado, sobretudo para não perderem as suas posições relativas no capital social. Nesse caso, há doutrina que entende que “deve tal possibilidade ser-lhe concedida, desde que o comunique à sociedade no prazo de que dispõe para deduzir a oposição”, enquanto solução decorrente do princípio da igualdade de tratamento dos sócios. Mas não se verificando essa solução vertida em letra de lei, a verdade é que impera a incerteza e o potencial tratamento desigual dos sócios. Maria de Fátima Ribeiro destaca, inclusivamente, que a lei “não estabelece um direito de preferência, nem prevê nenhuma solução que permita aos sócios minoritários assegurarem a manutenção da proporção da respetiva participação no capital social”, contrariamente ao que, aliás, sucede no Regime Jurídico de Conversão de Créditos em Capital. Uma forma de proteção dos sócios minoritários passaria pela alegação de abuso do direito em sede judicial, ou pela impugnação de deliberação abusiva. Mas, neste caso em particular, teríamos de considerar a existência de uma deliberação, “enquanto decisão de um órgão coletivo sobre uma proposta, neste caso unânime e formada pelo método referendário, através de votos expressos e tácitos, e não simultâneos”. Aliás, Rui Pinto Duarte defende que esta comunicação do sócio e não oposição dos demais corresponde a uma nova forma de deliberação social. Parece-me, por isso, que se deve considerar a existência de uma deliberação, precisamente enquanto meio de proteção dos sócios minoritários.
Este mesmo Autor aponta, ainda, para uma imprecisão do regime: os n.º 4 e 5, aditados ao artigo 87.º, não se enquadram no âmbito definido pela sua epígrafe “Requisitos da deliberação ou decisão”. Por esse motivo, há Autores que entendem que deveria ter sido criado um preceito autónomo, por exemplo o artigo 265.º-A, situado no Título III.
A desnecessidade de avaliação do bem por perito independente
O artigo 89.º, n.º 4 e 5 dispõe sobre o requisito da avaliação do crédito a converter. Para que a operação de conversão se concretize é necessário apenas que (i) um contabilista ou ROC declare e certifique que o crédito está contabilisticamente registado, mencionando a sua proveniência e data, e que (ii) o crédito esteja registado no último balanço aprovado.
Contudo, tendo em conta que o preceito exige a certificação de informações que constam dos registos contabilísticos da sociedade, compreende-se que a lei tenha sido mais benevolente (face ao previsto no artigo 28.º) ao permitir que tal certificação seja “efetuada pelo próprio contabilista ou ROC da sociedade, que são quem cuida de tais registos”. Descarta-se, portanto, o requisito da independência deste perito. Quanto ao demais, aplica-se o regime geral: o aumento de capital corresponde ao valor real dos créditos de suprimentos e não ao seu valor nominal, aplicando-se a responsabilidade do sócio pela diferença nos termos do artigo 25.º, n.º 3, no caso de esse aumento ter correspondido ao valor nominal e a responsabilidade dos gerentes nos termos gerais.
Maria de Fátima Ribeiro considera que o “risco efectivo de realização de uma entrada com valor inferior ao da participação que lhe vai corresponder” é acrescido por este desvio ao regime geral. É que a declaração do contabilista ou do ROC serve apenas para atestar a quantia que está registada como suprimento, o que corresponde ao valor nominal do crédito.
Ferreira Gomes considera que esta delineação do regime o torna desinteressante, na medida em que “o sócio controlador designa os gerentes que preparam as contas e contratam o contabilista certificado. O mesmo sócio controlador decide o aumento de capital assente nessas mesmas contas”. Com razão.
Seguindo-se o caminho da realização da assembleia geral, poderão os sócios aproveitar o artigo 89.º, n.º 4? As vozes da doutrina não são unânimes. Por um lado, Paulo de Tarso Domingues entende que sim, tendo em conta que a norma tem caráter geral e não faz menção ao mecanismo simplificado. Por outro lado, Rui Pinto Duarte entende que não.
Outros pontos do regime
Para além destes dois desvios, o regime geral de aumento de capital social por novas entradas aplica-se à conversão de suprimentos.
Mas a que tipos societários se aplica? A versão originária do Decreto-Lei fazia referência, no artigo 87.º, n.º 4, a “sócio de sociedade por quotas”, mas depois mencionava “gerentes ou administradores”. Esta contradição de termos teve origem no Projeto do Decreto-Lei, que aplicava o regime simplificado a todos os tipos de sociedade, não se fazendo aquela distinção do sócio de sociedade por quotas. Sucede que a versão final do diploma só quis integrar este tipo societário, mas olvidou a reformulação do resto das normas. Pelo que, apercebendo-se do lapso, o legislador veio, com a Declaração de Retificação n.º 21/2017, de 25 de agosto, eliminar a referência aos administradores. O mesmo quanto ao n.º 5 do artigo 87.º, em que se lia “a administração”, numa clara referência às sociedades anónimas, para se ler “o órgão de administração”.
Sem prejuízo, o artigo 87.º, n.º 4 e 5 refere-se ao requisito da desnecessidade de deliberação da assembleia geral, não se afigurando claro se um acionista pode fazer uso da desnecessidade de avaliação do bem nos termos do artigo 89.º, em que não se distingue o tipo de sociedade. A este respeito, Paulo de Tarso Domingues faz apelo às regras previstas no Direito da União Europeia, concretamente o artigo 49.º da Diretiva Codificadora, relativo a relatório dos peritos sobre entradas que não consistam em dinheiro. Esta norma determina que “As entradas que não consistam em dinheiro devem ser objeto de um relatório elaborado (...) por um ou mais peritos independentes da sociedade”. Nem o preceito, nem o diploma preveem uma exceção a esta regra correspondente ao nosso artigo 89.º do CSC. Como tal, não pode um acionista fazer-se valer desta exceção ao regime geral. Mesmo que a tal Diretiva não existisse, sempre se diria que “o regime está claramente em conexão com o previsto no artigo 87.º, n.º 4 CSC, e este, como se disse, apenas se aplica às SQ”.
Refira-se que o sócio não está obrigado a converter a totalidade dos seus créditos de suprimentos, podendo converter apenas uma parte, indicado que seja o montante na comunicação feita à sociedade.
Num outro ponto, importa atentar à qualificação de suprimentos para este efeito. É que, no regime simplificado, basta que o crédito esteja registado como suprimento no último balanço aprovado para ser qualificado como tal. Rui Pinto Duarte esclarece, assim, que a lei adotou um critério formal de suprimento, olvidando o disposto no artigo 243.º e não exigindo, nomeadamente, o caráter de permanência. “Em consequência, o CSC passou a usar a palavra «suprimento» com dois sentidos só parcialmente coincidentes.” Mas o mesmo Autor não critica esta aparente incoerência: no regime dos artigos 243.º e seguintes, “visa-se proteger os credores contra a subcapitalização nominal das sociedades consistente na manutenção como créditos de valores colocados pelos sócios permanentemente ao dispor das sociedades (...); no caso dos artigos 87.º e seguintes, “visa-se incentivar os sócios à conversão de todos e quaisquer créditos seus em capital social – não havendo, pois, razão para o circunscrever aos créditos com caráter de permanência.” Sem prejuízo, considera que o legislador devia ter escolhido outra palavra para este novo regime, “evitando o surgimento dela no CSC com mais de um sentido”. Mas Maria de Fátima Ribeiro apresenta algumas reservas quanto a este entendimento, “por o legislador falar claramente em suprimentos registados, o que pressupõe a qualidade de suprimento do crédito em causa, nos termos legais”.
A mesma Autora defende que estas novas regras se aplicam apenas aos “suprimentos que consistam em empréstimos de dinheiro e não àqueles que consistam em crédito com origem diferente desta, nem àqueles pelos quais um sócio empreste à sociedade outra coisa fungível”. Parece-me que uma boa opção, para acolher o entendimento destes dois Autores, seria a utilização da expressão “empréstimos de sócios à sociedade”, definida num preceito por equiparação aos suprimentos do artigo 243.º, mas sem o tal caráter de permanência, nem a referência às coisas fungíveis.
Ainda no campo dos conceitos, Maria de Fátima Ribeiro salienta que a palavra “conversão” não é utilizada em sentido técnico, “servindo apenas para condensar a referência a um processo tradicionalmente visto como de transmissão, para a sociedade, de um crédito do sócio sobre ela, com a sua consequente extinção, por confusão com a dívida correspondente na esfera da sociedade”.
Pode-se afirmar a existência de um dever de converter o crédito do sócio em capital, se essa solução melhor servir a prossecução do interesse social, atendendo às condições financeiras da sociedade? Maria de Fátima Ribeiro entende que se pode afirmar um mero dever de lealdade com contornos específicos e não equiparáveis aos do artigo 64.º. Este dever de lealdade concretiza-se “tão-só no dever de o sócio se abster de agir contra o interesse da sociedade”, assumindo, portanto, uma concretização negativa. Nessa medida, não se pode afirmar um dever do sócio de converter os seus suprimentos. No mesmo sentido, é de rejeitar o entendimento de que um sócio, ou um conjunto deles, que detenha participações correspondentes a, pelo menos, 75% do capital social possam determinar a conversão de suprimentos de outro sócio.
Coloca-se, ainda, a questão de saber se pode, em alternativa, tratar-se de um grupo de sócios que, em conjunto, atinjam a percentagem mínima necessária e procedam à conversão dos seus suprimentos em conjunto. À primeira vista, não parecem colocar-se entraves. Contudo, Maria de Fátima Ribeiro realça que o “problema poderia residir na oposição: é que um sócio minoritário pode pretender opor-se à conversão de um dos sócios e não se opor à conversão do outro”. A Autora defende que, neste caso, deve ficar posta em causa toda a operação. É que o sócio cuja conversão dos seus suprimentos foi rejeitada “pode ter formado maioria naquela comunicação apenas por acreditar que, simultaneamente, existiria também a conversão dos seus próprios, o que, por exemplo, impediria uma alteração grave da sua posição percentual no grémio societário”.
Em suma, este Decreto-Lei veio permitir a “conversão de um específico crédito (o crédito de suprimentos) em capital social” através de um regime simplificado, diverso do previsto para as entradas em espécie. Contudo, a doutrina entende, de forma unânime, que estas alterações não concretizaram um grande impacto prático. Pelo que se questiona a utilidade do regime da conversão de suprimentos em capital social, na sua modalidade simplificada, na medida em que (i) cria mais problemas do que resolve, (ii) há várias questões que ficam por responder que o regime não previu, e (iii) acaba por ser mais demorado do que o procedimento geral.
Bibliografia:
· CUNHA, Paulo Olavo, Direito das Sociedades Comerciais, 7.ª ed., Almedina, Coimbra, 2021;
· DOMINGUES, Paulo de Tarso, “A conversão de suprimentos em capital social (DL n.º 79/2017, de 30 de junho)”, in Direito das Sociedades em Revista, Vol. 18, Almedina, Coimbra, Ano 9 (2017), pp. 155-163;
· DOMINGUES, Paulo de Tarso, O Financiamento Societário pelos Sócios, Almedina, Coimbra, 2021;
· DUARTE, Rui Pinto, “A conversão em capital social de suprimentos e de outros créditos – Notas sobre o Dec.-Lei 79/2017, de 30 de junho, e sobre um projeto legislativo relativo à conversão de créditos de terceiros em capital social”, in SERRA, Catarina (coord.), IV Congresso de Direito da Insolvência, Almedina, Coimbra, 2017, pp. 319-340;
· GOMES, José Ferreira, “A alteração dos artigos 87.º e 89.º do CSC pelo Decreto-Lei n.º 79/2017, de 30 de junho: conversão de créditos de suprimentos em capital”, in Revista de Direito das Sociedades, Almedina, Coimbra, Ano IX (2017), Número 3, pp. 535-547;
· GOMES, José Ferreira, “Alterações aos artigos 87.º e 88.º do Código das Sociedades Comerciais – Conversão de créditos de suprimentos em capital”, in Revista de Direito das Sociedades, Almedina, Coimbra, Ano IX (2017), Número 1, pp. 25-31;
· GUINÉ, Orlando Vogler, “Comentários preliminares ao Regime Jurídico da Conversão de Créditos em Capital”,in Revista de Direito das Sociedades, Almedina, Coimbra, Ano X (2018), Número 2, pp. 289-317;
· RIBEIRO, Maria de Fátima, “Regime Simplificado de Aumento de Capital por Conversão de Suprimentos”, in SERRA, Catarina (coord.), Seminário de Direito da Insolvência, Almedina, Coimbra, 2019, pp. 49-78;
· TRIUNFANTE, Armando, Suprimentos, disponível em https://www.justicatv.com/2018/artigos/armando-triunfante-27-07-2021/SUPRIMENTOS.pdf.

Imagem retirada de: https://goglobal.pt/incentivos-fiscais/otimizacao-fiscal/rccs/
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