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O património social responde pelas dívidas contraídas antes do registo definitivo do pacto social?

  • Foto do escritor: Ana Cláudia Pereira
    Ana Cláudia Pereira
  • 30 de mar. de 2020
  • 4 min de leitura

Atualizado: 22 de mai. de 2023

Uma das questões que a doutrina mais debate a propósito do Direito Societário, e que hoje talvez não se coloque tanto com os regimes da Empresa na Hora e da Empresa Online, é saber se o património da sociedade responde pelas dívidas contraídas pelos sócios antes do registo definitivo do pacto social. Trataremos dos casos específicos das sociedades por quotas, sociedades anónimas e sociedades em comandita por ações, por serem aquelas que mais surgem na vida prática – as chamadas sociedades de capitais.

Os sócios podem, depois de concretizado o pacto social e antes do registo, celebrar negócios, contraindo obrigações, ou até mesmo criar direitos em nome da sociedade. A lei não proíbe que tal suceda, podendo mesmo esta atuação dar-se antes da celebração do contrato de sociedade. Pode haver, portanto, a necessidade de, antes do registo, serem adquiridas mercadorias, contratados trabalhadores, ou inclusivamente vender alguns produtos. E é precisamente por isto que a questão se coloca.

O artigo 40.º do Código das Sociedades Comerciais (doravante CSC) distingue dois tipos de sócios a este respeito: aqueles que agiram em representação da sociedade e/ou autorizaram o negócio; e aqueles que não o fizeram. Ora, quanto aos primeiros, dispõe a lei que a sua responsabilidade é ilimitada e solidária, enquanto que os segundos respondem apenas até ao limite das suas entradas, acrescidas dos valores que receberam (indevidamente) a título de lucros ou reservas.

O problema é que o referido preceito omite a sociedade, não sabendo, portanto, se o respetivo património responde já por estas obrigações. É que temos aqui dois interesses em causa: por um lado, os sócios que pretendem responder o mínimo possível, sendo o seu interesse responsabilizar o património social; por outro lado, os credores que contratam com a sociedade que pretendem ver garantidos os seus créditos, sendo o seu interesse responsabilizar os sócios para manter o património social.

Neste contexto, existem 4 grandes entendimentos. O primeiro, defendido por Ferrer Correia e Nogueira Seréns, parte do princípio da exata formação do capital social, segundo o qual a sociedade comercial, quando é constituída, terá um património pelo menos equivalente ao valor do seu capital social nominal. Assim, não se pode permitir que o património social seja gasto durante o período constitutivo da respetiva sociedade, pelo que por essas obrigações respondem apenas os sócios perante terceiros. Podemos, contudo, tecer algumas críticas a esta posição, desde logo o facto de constituir um contraincentivo ao empresarialismo, na medida em que onera demasiado os sócios. Para além disso, o referido princípio não é expressamente consagrado na nossa lei.

Uma segunda abordagem é seguida por Oliveira Ascensão, Coutinho de Abreu e Menezes Cordeiro. Segundo estes autores, o património social responde em primeira linha e os sócios respondem apenas a título subsidiário, por apelo a um argumento de maioria de razão. Se antes da celebração do pacto social era o património da sociedade que respondia em primeiro lugar nos termos do artigo 36.º n.º 2 do CSC, parece estranho que depois da referida celebração o património seja menos responsável do que já era. Todavia, esta tese acaba por desacautelar os interesses dos credores. No limite, pode todo o património social ser gasto durante o período constitutivo, não sendo suficiente para cobrir a cifra do capital social.

Uma terceira interpretação simplifica a questão. Maria Ângela Coelho recorre ao artigo 100.º do Código Comercial como regra geral da solidariedade nas obrigações comerciais, pelo que a responsabilidade da sociedade será solidária com a dos sócios. Mas a questão não é assim tão simples, na medida em que o preceito em análise não refere sequer a responsabilidade da sociedade, este argumento não é suficientemente convincente.

Finalmente, temos uma última teoria, defendida pelo estimado diretor da Faculdade de Direito da Universidade do Porto, Paulo de Tarso Domingues. Na esteira desta posição, a responsabilidade da sociedade e dos sócios deve ser aferida nos termos do artigo 19.º do CSC, que prevê os negócios assumidos pela sociedade que foram celebrados em seu nome antes do registo. Esta assunção tem efeitos retroativos, já que, se um sócio tiver cumprido uma obrigação perante um terceiro que depois vai ser assumida pela sociedade, pode o primeiro exigir desta o reembolso do que prestou, isto, claro, se estiverem preenchidos os pressupostos desta norma. Se estas obrigações vão ser assumidas mais tarde pela sociedade, faz sentido que já no período formativo ela seja pelo menos solidariamente responsável com os sócios. Quanto aos negócios que não cumpram o preceituado do artigo 19.º, a responsabilidade será exclusiva dos sócios, nos termos do artigo 40.º, não podendo estes exigir o reembolso à sociedade.

Parece-me mais razoável este último entendimento, na medida em que encontra maior acolhimento na letra da lei, concretamente por apelo ao artigo 19.º, e apresenta um argumento dificilmente refutável. O silêncio da lei não implica necessariamente que a sociedade não responda pelas obrigações mencionadas. Muitas vezes é necessário recorrer a outro tipo de interpretações, que não apenas a literal, para chegarmos a soluções que façam sentido dentro do nosso sistema jurídico como um todo. Este é precisamente um desses casos.

Em suma, e respondendo à questão, o património social responde pelas dívidas contraídas antes do registo definitivo do pacto social, se as referidas obrigações forem posteriormente assumidas nos termos do artigo 19.º do CSC.



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